A lei não passou mas voltará a discussão. Foram quase oito horas de debate na House of Lords, com 90 pares a apresentar opiniões e argumentos (4 minutos cada). Para quem viu (e eu vi a maior parte) resultou num debate esclarecedor, bem fundamentado e exemplar. Impossível descrever e falar de todos os argumentos. Refiro, por isso, o que me fica na memória. A presença da Igreja, que detêm 26 lugares. A forma esclarecida e clara de quem foi, de facto, um dos melhores oradores do dia – O Arcebispo de Canterbury, líder da Igreja Anglicana. Num discurso que falou para o ateísmo mais do que para a massa religiosa, porque essa já estava maioritariamente conquistada. Mas muito bem, ponderado e existencialista, o sr. arcebispo. Voltarei à Igreja mais tarde. Os Lords, quase sem excepção, demonstraram estar amplamente informados. Bombardearam factos: 80% da opinião pública a favor da lei, 70% dos médicos contra, 90% dos especialistas em cuidados paliativos contra. Claro está que os cuidados paliativos foram arma de arremesso usada por muitos do contra, mas também louvados pela bancada a favor. O argumento foi o de que os cuidados paliativos visam e têm efeito sobre as razões apresentadas pelos doentes para querer morrer – dor, falta de condições dignas de vida e aspectos psicológicos. Por isso, antes de pensar na lei, pense-se em estender os cuidados paliativos a todos os que precisam. Verdade. Mas é verdade também que para alguns doentes, ainda que em pequeníssima minoria, a vontade de morrer persiste mesmo com cuidados paliativos. A lei visa essa minoria e vincava um princípio fundamental de autonomia e escolha, diziam os pró. A lei tem implicações para além disso, modifica a relação de confiança do doente com o médico e subverte a lógica hipocrática da medicina, diziam os contra.
Muitos dos Lords referiram a imensa correspondência recebida, a grande maioria de pessoas que estavam contra. Foi esclarecedor saber, por via de Lord Joffe, o responsável pela lei proposta, que este acto “público” foi em parte resultado da campanha montada pela…Igreja (Católica), que enviou 500,000 cds e panfletos para os seus seguidores a instigar o envio de cartas e e-mails para os Lords. E, numa participação efusiva de um “noble Lord”, ouvi que esse dinheiro teria sido mais bem empregue na distribuição de preservativos em África, que isso sim mostrava uma Igreja preocupada com a preservação da vida humana.
A minha opinião: dividida e consciente dos argumentos a favor e contra. A favor, na vertente da escolha e autonomia de cada um para determinar o rumo da sua própria vida (e morte). Contra, nas implicações complexas de tal passo legislativo para uma sociedade e sistema de saúde, que poderão não estar ainda ou mesmo nunca estar preparados para o tomar. Em relação aos dados fornecidos – acho as sondagens de opinião pública reducionistas e seria mais útil perguntar ás pessoas as razões pelas quais concordam e discordam. Acho também que o facto da maior parte dos médicos estar contra é importante, porque seriam eles a “levar o barco ao cais”. Compreendo a sua posição - difícil. Mas não deixo de pensar que se a legalização for algum dia para a frente, a medicina passará por uma transformação interessante de expansão além cura, se calhar adequada aos desafios que já enfrenta e que enfrentará cada vez mais no futuro – mais doenças crónicas, mais cancro, mais idosos. Aceitar a “mortalidade” da cura e tomar também como missão o acompanhar da morte.